Negócios Jurídicos Processuais: Equilíbrio entre o viés público e o viés privado do processo civil

Júlio César S. Sobrinho Santos

“Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. A frase é de Hely Lopes Meirelles, presente no seu livro Direito Administrativo Brasileiro (2012, p. 89), e expõe, com rara felicidade, a mais significativa distinção existente entre a liberdade no espaço privado e no espaço público. Ocorre que, nas últimas décadas, presenciamos o fenômeno da interpenetração de alguns institutos do direito público no universo da vida privada, muito impulsionado pelo denominado neoconstitucionalismo.[1]

A utilização pelo legislador de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados, tais como função social do contrato e da propriedade, dignidade da pessoa humana, ordem pública, entre outros, reforçou a tendência publicista do Direito nos últimos anos. Todas elas buscam limitar o exercício de algumas prerrogativas individuais privadas.

Como é cediço, para a total eficácia das cláusulas gerais, tais como as acima citadas, o juiz deve valorar e justificar a sua aplicação em cada caso concreto. Desta feita, fica intensificada a intervenção estatal nos meandros da vida privada.

Pode-se dizer, com alguma razão, que nenhum instituto de direito privado se encontra imune às investidas do legislador no sentido de restringir o exercício de direitos relacionados à autonomia da vontade. O sistema de proteção ao consumidor, do qual faz parte o Código de Defesa do Consumidor – Lei 8.098/90 –, é um exemplo da mitigação do autorregramento da vontade nos contratos de cunho consumerista.

Diante deste contexto, o legislador pátrio, ao elaborar o vigente Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), procurou trazer maior equilíbrio, valorizando o exercício da autonomia da vontade das partes no âmbito do processo civil. Estamos falando especificamente do art. 190, que assim preleciona:

Art. 190.  Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

De sua leitura, extrai-se que as partes em litígio podem adequar o procedimento estatal, adaptando-o às suas necessidades e particularidades eventualmente presentes no direito material almejado.

É sabido que a extensa gama de situações fáticas possíveis de serem percebidas no mundo fenomênico exige certa habilidade do Poder Judiciário e da advocacia, principalmente, em adequar as pretensões de direito material em procedimentos pré-fixados pelo legislador.

Alguns procedimentos foram criados a partir das particularidades de certos direitos materiais. Por serem tão específicos e singulares, forçoso foi ao legislador criar um procedimento ou uma técnica processual própria para eles. Podemos citar como exemplo as ações possessórias, que, a depender do prazo em que foram intentadas, possuem uma técnica especial de antecipação de tutela. Se essas ações fossem ajuizadas sob o manto do procedimento comum, a efetividade da prestação jurisdicional poderia ficar comprometida.

Ocorre que grande parte dos direitos materiais pretendidos em juízo submete-se ao procedimento comum. Em boa hora veio o negócio jurídico processual, como mecanismo para adequar com mais perfeição o procedimento processual ao direito material exposto em juízo.

Evidente que não se pode utilizar o instrumento ora discutido como meio para fraudar a lei ou causar prejuízos a alguma das partes. Por isso mesmo, o dispositivo dispôs sobre as situações em que a convenção processual não será admitida, para além dos casos em que a demanda versar sobre direitos que não admitem autocomposição. Vejamos:

Art. 190. […]

Parágrafo único.  De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Assim sendo, uma vez entabulado um negócio jurídico processual, o juiz analisará os requisitos de sua validade e deverá respeitá-lo, se válido, pois, num Estado Democrático de Direito, todos os indivíduos e especialmente os julgadores devem se curvar perante uma norma jurídica válida.

Outra baliza para a admissão dos negócios jurídicos processuais deverá ser a sua eficiência. Verificando o magistrado que o negócio é inadequado ao direito material e que trará mais atraso ao processo, deverá rejeitá-lo. Por outro lado, se verificar que será instrumento de maior eficácia e efetividade do direito material pleiteado, não haverá razões para afastar a sua aplicação.

Neste sentido, trata-se, a nosso ver, de um importante e relevante avanço legislativo na busca do ideal de processo como instrumento para efetivação do direito material e da pacificação social, como há muito já afirmado pelo mestre Cândido Rangel Dinamarco.[2]

Não devem haver entraves desnecessários nem uma rigidez insuperável no processo, podendo as partes convencionarem de forma a se tornarem protagonistas do processo com o juiz.

Cabe, agora, ver como o Judiciário se comportará diante da cláusula geral de negociação processual.

[1] Usamos aqui o termo neoconstitucionalismo, ressalvando a nossa posição de concordância com as críticas a ele feitas por Luigi Ferrajoli e Lenio Luiz Streck no livro Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo – um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2012.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 6. ed. São Paulo:

Malheiros, 1998. p. 179