A Tragédia dos Comuns e a governança ESG
Reflexão permanece atual, quando a comunidade empresarial é desafiada a rever conceitos
Por Daniel Seixas Gomide para o Valor Econômico
O ecologista americano Garret Hardin (1915-2003) ilustra o conflito oriundo da maximização do interesse privado em uma estória inserida em artigo que publicou no fim da década de 1960.
O artigo aborda a questão da expansão populacional em escala geométrica em um mundo com recursos escassos e finitos, conforme teoria elaborada, no século XIX, pelo economista Thomas Malthus (1766-1834), como um problema em que a solução não depende apenas de tecnologia, mas também de autocontenção do consumo desses recursos, e nos apresenta uma parábola, que denomina “A Tragédia dos Comuns”, que se desenvolve da seguinte forma: havia um pasto, em uma determinada comunidade, aberto a todos os fazendeiros de uma determinada região para alimentar livremente seus rebanhos. Esse acordo funcionou bem por muitos anos porque guerras tribais, predadores e doenças mantinham os números da população humana e do gado abaixo da capacidade do pasto. Todavia, uma vez alcançada a estabilidade social, alguns fazendeiros começaram a buscar meios de aumentarem seus ganhos individuais e consideraram as vantagens e desvantagens de adicionarem, cada um, mais uma cabeça de gado a seus rebanhos. De um lado, a expansão do rebanho incrementaria em +1 o ganho do fazendeiro quando aquele animal fosse vendido; por outro lado, o ônus da adição de mais uma cabeça de gado para a capacidade do pasto poderia ser compartilhado com a coletividade, portanto, diluído ($Hardin utiliza essa parábola para demonstrar que o uso livre e não regulado de bens de uso comum, focado em maximizar interesses privados, pode resultar em decisões moralmente equivocadas e potencialmente desastrosas, pois a força da seleção natural leva um indivíduo (ou grupo de indivíduos) a agir no seu melhor interesse e negar a realidade, mesmo ciente de que a coletividade da qual ele faz parte possa sofrer com os efeitos negativos dessas decisões.
Reflexão permanece atual, quando a comunidade empresarial é desafiada a rever conceitos
Essa reflexão permanece atual quando a comunidade empresarial é desafiada a rever conceitos estabelecidos, de viés utilitário, para reduzir os efeitos socioeconômicos na coletividade decorrentes da mudança climática no planeta, nosso bem comum. Independentemente do lado que se escolha no debate sobre acausa dessa mudança, não é possível negar o fato de que investidores institucionais e autoridades governamentais estão cada vez mais mobilizados pela pauta ASG ou ESG (em inglês, as práticas empresariais relacionadas às áreas ambiental, social e de governança), o que reflete na maior rigidez da regulação e em sanções sobre os gestores das empresas, sobretudo as que exploram recursos naturais, que não utilizam fontes de energia limpa em seus processos produtivos ou que empregam trabalhadores de forma discriminatória e não inclusiva.
Percebe-se que a governança corporativa associada ao socioambiental é uma inovação importante trazida pelo ESG, na medida em que não é impulsionada somente a partir de norma estatal, no caso, pela nova regulação da CVM, com aplicação limitada às companhias de capital aberto, mas, sobretudo, pelos padrões de comportamento adotados pelo mercado, que atualizam e redimensionam a função institucional do controlador e dos administradores de sociedades, a partir de normas internas que promovem mais transparência para os stakeholders sobre a efetividade das práticas socioambientais dessas organizações.
Nesse aspecto, vale observar como os padrões do mercado relacionados ao ESG podem repercutir na esfera da responsabilidade pessoal do administrador quando a decisão envolver proposta que maximize o lucro para o acionista, mas com potencial de gerar efeitos socioambientais negativos, como, por exemplo, a mudança de uma unidade industrial para outro país, justificada pela redução de custos, que provoque a demissão em massa de empregados, aumentando o passivo trabalhista da empresa e afetando a economia local.
No direito societário brasileiro, a princípio, o administrador não responde pessoalmente à companhia pelos prejuízos causados por suas decisões, desde que tenha agido dentro de suas atribuições e no interesse da companhia, salvo se o dano tiver sido causado por culpa ou dolo ou, ainda, com violação do estatuto ou da lei pelo administrador (LSA, art. 158, incisos I e II).
Não obstante, sendo o interesse da companhia um conceito fluido que, em nosso ordenamento, é ponderado pelas exigências do bem público e a função social da empresa, e definido pelos padrões de comportamento dos demais agentes do mercado – os usos e costumes, o ESG tem o potencial de elevar o risco de responsabilização direta dos administradores, quando uma decisão motivada apenas na maximização de valor para os acionistas prejudicar os trabalhadores, os consumidores ou o meio-ambiente da comunidade onde a empresa desenvolve sua atividade econômica.
A Tragédia dos Comuns, como concluiu Garret Hardin em seu artigo, pode ser evitada pela conscientização da comunidade empresarial através da educação, oque se dá pela governança corporativa, mas a sucessão de gerações futuras requer que a base do conhecimento seja constantemente atualizada, através da verificação de conformidade e da revisão periódica das políticas internas e das práticas das companhias, de seus parceiros de negócios e dos terceiros que integram sua cadeia de suprimentos.
Daniel Seixas Gomide é advogado em São Paulo e professor associado do CEU Law School.
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