Exercício de voto do acionista com potencial conflito de interesse com a sociedade: como resolver?

 

É inegável que uma das grandes discussões da Lei das Sociedades por Ações é o tratamento dado ao acionista com potencial conflito de interesses. De um lado, há a possibilidade de impedimento do acionista em conflito de votar a determinada matéria (aplicando-se, portanto, a teoria do conflito formal), e, por outro lado, a permissão do voto deste acionista, impondo aos demais acionistas o ônus de anular a deliberação aprovada pelo voto conflitado (teoria do conflito material).

Temos bons argumentos dos dois lados: do lado do conflito formal, podemos argumentar que no direito privado presume-se a boa-fé e somente o abuso de direito seria reprovável. Porém, como saber se o acionista está abusando do seu direito se ele previamente estaria impedido de exercer o seu direito de voto? Esse impedimento afeta especialmente o acionista controlador, o qual, economicamente, é o maior beneficiado ou prejudicado pelas deliberações da sociedade e, consequentemente, quem assume o maior risco.

Noutro sentido, no conflito material, posterga-se a discussão acerca do abuso de direito do voto do acionista em suposto conflito de interesses, permitindo ao acionista supostamente em conflito que voto a matéria e outorga aos demais acionistas o direito de impugnarem a deliberação na jurisdição competente (seja judicial ou por meio de arbitragem), podendo o ônus de comprovar o conflito ser imputado ao acionista em conflito ou aos demais acionistas.

Além da divergência do ônus da prova, um ponto importante é que a deliberação já teria sido tomada e o prazo para a resolução do conflito corre em desfavor dos demais acionistas e da própria sociedade, que poderá ter uma deliberação anulada posteriormente.

É inegável que a Lei das Sociedades por Ações adotou a teoria do conflito formal, pela qual “o acionista não poderá votar nas deliberações” em situações de conflito de interesses, seja na deliberação a respeito da avaliação dos bens em que concorrer para a formação do capital social, a aprovação de suas contas como administrador ou ainda quaisquer matérias que possam beneficiá-lo de modo particular ou que tiver interesse conflitante com a companhia (§1º, art. 115 da LSA).

Porém, não é uma tarefa fácil a identificação de benefício particular ou interesse conflitante em situações complexas, quando vários interesses, tanto da sociedade quanto dos acionistas, estão em jogo.

Por essa razão, com o apoio da Comissão Especial de Direito Societário da Ordem dos Advogados do Brasil, foi incluído na Medida Provisória nº 881 (denominada de MP da Liberdade Econômica) uma alteração do referido artigo da Lei das Sociedades por Ações para adotar a “teoria do conflito material”, ou seja, para permitir o voto do acionista em suposto conflito com a companhia e caso haja algum abuso, este voto poderia ser posteriormente anulado.

Entretanto, o texto da MP da Liberdade Econômica aprovado pela Câmara dos Deputados retirou a alteração do artigo da Lei das Sociedades por Ações, o que por si só, não cessa a discussão sobre essa matéria, especialmente entre profissionais que lidam com governança corporativa. Qual seria então o melhor modelo?

Como já dito, os dois posicionamentos estão fundamentados em bons argumentos. Todavia, se um dos pilares do direito privado é a presunção da boa-fé, não nos parece razoável que a própria lei impeça os acionistas de estabelecer a melhor maneira de tratarem as situações de conflito de interesses, seja permitindo o voto ou impedindo-o.

Se os acionistas ao constituírem ou entrarem em uma sociedade conhecem suas regras, seja elas dispostas no Estatuto Social ou em Acordo de Acionistas, cabe a eles optarem ou não pelo exercício de voto em conflito de interesses ou pelo ingresso em uma sociedade que preveja o (ou não) o exercício de voto nestas situações.

Neste sentido, se a legislação der a possibilidade para que o Estatuto Social ou o Acordo de Acionistas preveja a melhor forma para as situações de conflito, os acionistas serão provocados a discutir essa matéria e prever mecanismos de proteção da sociedade e dos próprios acionistas na constituição ou no ingresso na sociedade. E é na constituição ou no ingresso o melhor momento para a discussão de questões cruciais como esta.

No entanto, se a permissão do voto do acionista (principalmente o controlador) em suposto conflito de interesses desincentivar de alguma forma o desenvolvimento do mercado de capitais pela falta de confiança dos acionistas minoritários, nada impede que a Comissão de Valores Mobiliários ou a B3 atuem, por exemplo, penalizando o voto abusivo e/ou adotando a teoria do conflito formal para as companhias abertas, especialmente nos níveis diferenciados de governança corporativa.

Portanto, como se vê, mesmo que a proposta de alteração da Lei das Sociedades incluída na MP da Liberdade Econômica tenha sido retirada, é imprescindível uma maior discussão a respeito da atualização de alguns pontos da legislação societária, dentre eles, a possibilidade (ou não) do acionista exercer seu voto em potencial conflito de interesses.