Reflexos Jurídico-Penais do Novo Coronavírus (COVID-19)

 

 

Por Rafhaella Cardoso[1]

 

  1. Principais Delitos Relacionados ao COVID-19

 

Destacamos alguns dos delitos principais relativos ao COVID-19: a) o delito de periclitação da vida e da saúde consistente no perigo de contágio de moléstia grave; b) o delito de infringir determinação do poder público destinada a conter doença contagiosa; c) o delito de causar epidemia por meio da propagação de germes patogênicos; e, por último, d) o delito contra a economia popular provocando-se a alta ou baixa dos preços de forma artificiosa.

  1.1Crime de Periclitação à Saúde: Perigo de Contágio de Moléstia Grave – art. 131 do Código Penal

 

O primeiro delito relacionado ao Novo Coronavírus é o previsto no art. 131 do Código Penal, que consiste em “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio”, cuja pena é de reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Para que haja a configuração do referido delito é necessário que haja a consciência do agente que está contaminado com o COVID-19 e de que esse paciente também esteja consciente acerca das atitudes que pretende praticar contra outrem, bem como esteja ciente das consequências do meio que pretende se valer para transmitir a moléstia grave.

Em razão da pena, pode ensejar a aplicação de benefícios penais como: a suspensão condicional do processo (sursis processual) previsto na Lei 9.099/1995 ou mesmo uma condenação que permita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (como a prestação de serviços comunitários), prevista no art. 44 do Diploma Penal.

    1.2 Crime contra a Saúde Pública: Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa – art. 268 do Código Penal (complementado com a Lei nº 13.979/2020 de 06.02.2020)

 

O art. 268 do Código Penal incrimina aquele que “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” cuja pena é de detenção, de um mês a um ano, e multa”.

O bem jurídico protegido é a saúde pública, ou seja, diz respeito à proteção da saúde como um bem de toda a coletividade e “pressuposto fundamental para a vida humana digna” (PRADO, 2019, p. 1683).

Como o termo “determinação” é amplo, dizemos que é uma norma penal em branco e que pode ser preenchida por qualquer determinação de autoridade: municipal estadual ou federal.

A todo momento é editada uma normativa nova, então é preciso que estejamos atentos às novas determinações legais e administrativas de enfrentamento ao COVID-19 para compreender o referido delito. Interpretado sistemicamente com a recente Lei nº 13.979/2020 que entrou em vigor em 6 de fevereiro de 2020, destaca-se várias medidas para evitar a contaminação ou a propagação da doença, tais quais: o isolamento, a quarentena e a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, vacinação e tratamentos médicos específicos.

Consuma-se o referido delito com o desrespeito à determinação do poder público municipal, estadual ou federal que vise impedir a introdução ou a propagação do Novo Coronavírus, independentemente da ocorrência do dano efetivo. Por se tratar de crime de perigo abstrato (D’ÁVILA, 2009), não é necessário que se prove o efetivo dano à saúde pública, pois esta ofensa é presumida pela lei de forma absoluta.

Apesar de ser um crime de menor potencial ofensivo que enseja a competência dos Juizados Especiais Criminais e permite a possibilidade de transação penal (art. 76 e ss. da Lei 9.099/1995) à primeira notícia do delito gera-se como consequência a imediata com a lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) a fim de destacar criminalmente as ordens de restrição em prol do resguardo da saúde pública diante da situação de pandemia.

 

1.3 Crime de Epidemia (e Pandemia): Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos – art. 267, caput e parágrafo 1º do CP (complementado com a Lei 8.072/1990)

 

Aos indivíduos que estejam dolosamente com a intenção de propagar o novo COVID-19, é possível gerar-se a responsabilização penal pelo delito de epidemia previsto no art. 267 do Código Penal: “Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. A pena inicial é de dez anos e pode chegar até quinze anos de reclusão. Se resultar morte(267, parágrafo 1º do CP), a pena pode ser aumentada até o dobro (e chegar até a 30 anos) e terá maior rigor pela Lei dos Crimes Hediondos – Lei 8.072/1990.

Cabe ressaltar que apesar do termo “epidemia” trazido no tipo penal não se confundir com “pandemia” – que é o termo que está sendo empregado para a situação em que se encontra a COVID-19; cabe distinguir que o primeiro termo se configura através da disseminação de agentes patogênicos que põem em risco o bem jurídico saúde pública, num nível de contaminação mais restrito. Porém, nada impede que este tipo penal possa abranger e incriminar situações como a “pandemia” da COVID-19, que se trata de uma propagação rápida e mais ampla identificada em todos os continentes do planeta.

 

1.4 Crime contra a Economia Popular: Provocar alta ou baixa de preços de forma artificiosa – art. 3º, VI e outros da Lei n. 1.521 de 1951

 

É preciso destacar também que em situações adversas a economia popular também esteja correlacionada aos problemas de contenção da propagação do COVID-19, merecendo a atenção ao delito previsto no art. 3º, VI e outros da Lei de Economia Popular[2] – Lei n. 1.521 de 1951.

Destaque-se o inciso VI, do art. 3º da referida lei que tipifica a conduta de: “provocar a alta ou baixa de preços de mercadorias, títulos públicos, valores ou salários por meio de notícias falsas, operações fictícias ou qualquer outro artifício”, que depende de dolo do agente para que o delito se perfaça. Isso porque, como citado acima, ao se tratar de uma lei “contra a economia popular” devem ser penalmente relevantes atos que provoquem abalos profundos na coexistência coletiva. Na atual dimensão social do Novo Coronavírus para que haja a consumação do tipo penal acima não é indispensável a alteração efetiva dos preços, basta a utilização dos mecanismos artificiosos para atingir determinado fim.

Em razão das sérias consequências à economia popular e com isso afetar grande número de pessoas, o referido delito prevê a pena de detenção de 2 (dois) anos a 10 (dez) anos, e multa. Adverte-se, contudo, que nada impede que seja aplicado os benefícios da suspensão condicional da pena, o “sursis” (previsto no art. 77 do Código Penal), caso a pena em concreto não supere ao mínimo legal ou mesmo uma eventual substituição da pena corporal por restritiva de direitos, caso esta não supere a quatro anos, nos termos do art. 44 do Código Penal.

 

  1. Considerações finais

 

À guisa de conclusão, várias são as hipóteses em que agentes poderão ser responsabilizados criminalmente dentro ou fora da empresa a partir da propagação do novo Coronavírus. Entendemos que é um assunto de alto risco e que merece atenção especial nas constantes comunicações internas, treinamentos online e monitoramentos da empresa, sendo um dos principais pontos das medidas de integridade o cumprimento das novas determinações trazidas pela Lei 13.979/2020.

Porém, atente-se aos gestores o cuidado de não significar um “combate aos doentes” dentro do ambiente da empresa, evitando-se uma “histeria jurídico-penal ou higienização social”, pois como visto, a maioria dos delitos exige no mínimo o dolo eventual para a configuração do tipo subjetivo (CATANI, 2020).

Ante o exposto, ainda que de forma mínima os reflexos das novas posturas diante do COVID-19 podem levar à responsabilização penal endereçada àqueles que, conhecendo as medidas de prevenção e isolamento demandados pela empatia social insistem na propagação da doença, expondo grupos mais deficitários em risco.

 

Referências:

CATANI, Frederico. Quem tem sintomas de coronavírus e não toma cuidados comete crime? Conjur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-14/frederico-cattani-quem-coronavirus-nao-cuida-comete-crime. Acesso em 16.mar.2020.

D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: escritos sobre a teoria do crime como ofensa a bens jurídicos. Porto Alegre: livraria do Advogado, 2009.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Ed. Forense, 1958.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro / Luiz Regis Prado. – 17. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[1] Doutora em Direito Penal pela FDUSP. Mestre em Direito Público pela UFU. Especialista em Ciências Penais pela UNISUL. Pós-Graduanda em Contabilidade e Gestão Tributária pela FACIC-UFU. Advogada Sênior e Head Office na área de Direito Penal Empresarial e Compliance no Romano Donadel Advogados Associados. Vice-Presidente da Comissão de Direito Penal junto à 13ª Subseção da OAB/MG em Uberlândia. Palestrante e Consultora Jurídica. E-mail: compliance@romanodonadel.com.br.

[2] Nelson Hungria, no sentido de que, para a ocorrência de um crime contra a economia popular faz-se necessário que o fato represente “um dano efetivo ou potencial ao patrimônio de um número indeterminado de pessoas” (HUNGRIA, 1958). Isso porque tratar da proteção da economia popular é lidar com um bem jurídico supra-individual permeado de complexos interesses econômicos, familiares e individuais, constituído em um patrimônio de um número indeterminado de indivíduos.